Prefácio.
É com enorme gosto que escrevo o prefácio de um livro que considero como um trabalho – ou melhor, uma compilação de trabalhos – de grande interesse. A obra tem como grelha analítica focal comparações sistemáticas, embora de geometria variável, de sistemas de governo e, neles, dos poderes e competências que constitucionalmente cabem aos respectivos Chefes de Estado. Estabelece a ligação dos trabalhos, para além deste foco-pivot, uma perspectivação jurídica comparativa. Vale decerto a pena, num breve esforço introdutório, formal, mas, assim o espero, com alguma substância, cartografar o que os autores congeminaram neste esforço conjunto bastante inovador. Nas mãos hábeis de um grupo de doutorandos da NOVA Direito, Faculdade são aqui examinados e comparados, em pormenor e num quadro jurídico-constitucional alargado, as atribuições e competências dos Presidentes de alguns dos Estados que nos rodeiam, incluindo o nosso.
Cada um dos capítulos da obra que o leitor tem entre mãos aborda o “lugar jurídico estrutural”, analisado invariavelmente no que acaba por redundar num somatório de um número significativo de Estados de pares ordenados, cada um deles sempre escrutinado contra um pano de fundo histórico. Assim, no primeiro capítulo são comparados com rigor e detalhe os papéis dos Presidente de um par de Estados africanos, o da República da Guiné Equatorial e o de Angola. No segundo, a comparação debruça-se sobre um outro duo, desta feita no Novo Mundo, a Argentina e a Colômbia. No terceiro, o Brasil e os Estados Unidos da América, no quarto o Chile é posto de par com o Uruguai. Já no quinto, numa terceira viragem continental, esta para a Europa, são escrutinadas as competências constitucionais dos Chefes de Estado da Itália e da Áustria. O sexto capítulo centra-se numa comparação relativa aos poderes dos chefes de Estado na Índia e na Jordânia, ambos na Ásia. Curiosamente, no sétimo capítulo, com alguma fundamentação e perspicácia, a comparação é feita entre as circunscrições constitucionais dos poderes e competências Presidentes de Portugal e do Brasil. No sétimo e último dos capítulos a atenção regressa às Américas, desta vez apenas à América do Sul, e a comparação levada a cabo é entre a Venezuela e o Equador. Indiscutivelmente, a amplitude política e geográfica é enorme, e os pares de Estados sujeitos a descrições e comparações são bem escolhidos. Trata-se de uma colectânea bastante coerente e bem gizada de trabalhos jus-comparativos fascinantes para os estudiosos deste tema central, que tão importante tem demonstrado ser num universo estadual em mudança acelerada: o dos poderes do Chefes de Estado num Mundo contemporâneo. Um Mundo sujeito a pressões várias, umas centrífugas, resultantes de – ou pelo menos ligadas a – processos de integração regional e global que temos vindo a apelidar de “globalização pós-Westphalia”. E de outras, estas centrípetas, que têm vindo, um pouco por toda a parte, a redundar em recuos – tanto nas integrações regionais que fervilharam como na integração global crescente em planos políticos, económicos, culturais, religiosos, e jurídicos, de maneiras assaz inesperados – de o que muitos pensávamos como uma onda crescente e inexorável de um cosmopolitismo que parecia estar na ordem do dia. Surpreendente? Não o creio.
Em boa verdade, as pressões a que fiz alusão operam em paralelo, o que de algum modo transtorna muitas das certezas que tínhamos como adquiridas em todos estes planos por via de regras convergentes. À globalização e regionalização galopantes que vivemos dos anos 80 do século passado em diante, pelo até ao início deste, vieram contrapor-se reacções num sentido inverso, de reafirmação da reserva soberana dos Estados Westphalianos “clássicos”, que deu corpo a movimentos de “des-globalização” e “des--regionalização”, para utilizar dois termos cada vez menos neológicos. Tal como durante outros processos de maturação de Estados, assistimos a sérias derives e alterações políticas quantas vezes populistas e, por isso mesmo, tantas vezes polarizantes. Como não podia deixar de ser, tais tensões tiveram efeitos tangíveis nas ordens politico-constitucionais de muitos dos Estados que nos rodeiam – e, designadamente, como aqui vemos.
Com efeito, basta uma leitura superficial das alterações nos sistemas de governo que subtendem a orgânica dos Estados que integram um sistema internacional numa transição complexa e não-linear. É certo que tais mudanças e desenvolvimentos politico-constitucionais reactivos variaram muito, e decerto continuarão a variar, do caso a caso. Mas julgo também ser óbvio que as diferenças detectadas dão corpo a pouco mais do que variações sobre temas que se afirmam de formas que têm, entre si, evidentes semelhanças de família...Com os benefícios da retrospecção, outra coisa não seria decerto de esperar. Tal como a “segunda globalização” que teve lugar entre as últimas décadas do século XIX e a s primeiras do século XX, as pulsões soberanas dos Estados e, neles, das cadeias de comando, reagiram ao que, quantas vezes pressentiram como ameaças. Os anos 20, 30 e 40 do século passado têm de maneira crescente vindo a ser comparados com as duas primeiras décadas do século XXI, o que agora vivemos. A leitura destes nove capítulos – embora não tenham porventura os autores tido essa intenção – ilustra de algum modo o porquê dessas comparações que tantos têm vindo a fazer. Como sempre acontece, umas ideias puxam por outras. Tem sido esse o ADN da nossa Faculdade e do nosso Centro: um ADN que nos leva a passar de domínio em domínio, ensaiando uma linguagem e uma ideação multidisciplinar que nos leve, um dia, à transdisciplinaridade almejada pelos nossos Pais Fundadores. Uma herança que há que proteger, o que julgo estar num bom caminho. Está o CEDIS de parabéns com esta publicação, e em nome do Centro agradeço aos seus autores o empenhamento que tiveram. Um empenhamento que espero continue, e se manifesta noutros esforços do mesmo tipo. Várias maneiras há para o fazer com a eficácia desejada. Em primeiro lugar, o os textos podem subir de patamar com um esforço de um mais intenso adensar das articulações entre estas leituras e os contextos político--conjunturais envolventes, tanto externos como internos, como estou certo que os autores concordarão. Em segundo lugar, e como uma espécie de corolário disso mesmo, das vantagens desse adensamento, e num ponto relativamente ao qual com facilidade se encontrará um consenso, haveria seguramente ganhos, se fosse adensado o pano de fundo histórico dos textos constitucionais analisados, nisso incluindo as alterações sistémicas múltiplas em que os textos em apreço se enquadram. Mais, e enunciando a questão de outro ângulo: haveria vantagens em esmiuçar em maior profundidade e em maior pormenor os golfos que, em muitos dos casos (senão em todos, embora sem dúvida nuns exemplos mais do que noutros) separam a law in the books da law in action. O fazê-lo porá com certeza em relevo as vantagens advenientes de uma explicitação, caso a caso, não só dos muito reais e concretos fundamentos para as legiferações constitucionais aqui – como noutros casos – expostas e analisadas, como ainda acrescentaria um instrumento útil para uma melhor compreensão das mudanças delas que seguramente estão para vir, reduzindo assim também o potencial anacronismo rápido a que trabalhos deste tipo inevitavelmente estão sujeitos. Da leitura dos nove capítulos que integram este volume, resulta evidente que os autores tiveram disso consciência. Não constitui isto uma crítica, bem pelo contrário; trata-se tão só de uma achega relativamente a um par de pontos que já são tomados em linha de conta nos textos que ora são publicados para grande benefício de todos nós, os leitores desta tão bem-vinda e tão refrescante e bem sincronizada obra colectiva.
Repetindo o que atrás escrevi, estão de parabéns os autores destes estudos encadeados uns nos outros, e saúdo-os por o terem feito.
Deixo, também, palavras de agradecimento à Dra. Maria João Carapêto pela iniciativa e a energia, que sempre soube manter, para que esta obra se concretizasse.
Termino este já longo prefácio com um desafio: que outras compilações deste calibre nos sejam apresentadas e propostas, em trabalhos individuais ou conjuntos que nos permitam aprofundar mais e mais temas que são do maior interesse académico, sobretudo em ecossistemas nos quais a multidisciplinaridade é de raiz – temas relativamente aos quais se procuram percursos novos que nos permitam vir a bem enraizar novas narrativas que tanto falta nos fazem.
Professor Doutor Armando Marques Guedes
Director, CEDIS, NOVA Direito